Gilda

A vida é feita de coisas boas, de alegrias, de tristezas, de ausências. Não dariamos valor a umas sem as outras, pois são todas elas que nos fazem quem somos e que nos dão forma, por dentro e por fora. Quando alguém que nos é querido parte deixa um buraco. Só quem ama verdadeiramente sente estes buracos e sabe que ficarão connosco para sempre. O tempo vai-nos enchendo o coração de buracos.

A Gilda partiu ontem para aquele sítio que tem um cantinho quente, com um cobertor felpudo só dela. Foi minha companheira durante quase quatorze anos e comigo passou por muitas aventuras e desventuras. Teve uma vida atribulada e, a princípio, itinerante com a sua irmã Lux. Depois veio o Alice e os três tornaram-se membros queridos da família. A Gilda era arisca; nunca foi uma gata especialmente gregária e prezava mais do que tudo o seu sossego, se possível quentinho e fora das rotas de passagem habitual. As visitas da casa raramente a viam e acredito que terão chegado a duvidar da sua existência. Quando saíam, lá aparecia ela, toda lampeira e como quem perguntava "Então, já temos sossego outra vez?". Nunca precisou de muito mimo e esgueirava-se quando os donos lho queriam dar. Era uma espécie de Citizen Kane do mundo felino: queria o amor, mas apenas nos seus próprios termos. Quando precisava de mimo pedia, com uma insistência notável e não desistia enquanto não o recebia, a qualquer altura, a qualquer momento, chegando a receber o epíteto "A Gata Inconveniente". Aprendeu cedo a estender a pata e pousá-la na nossa não, como quem diz "Dá-me mimo. Agora." até subitamente decidir que era suficiente e desaparecer novamente para o seu cobertor. No entanto estava sempre presente e também sabia dar. Se estivessemos doentes não arredava pé, contribuindo para as nossas melhorias com o seu calor, uma pata pousada delicadamente no braço, um nariz molhado encostado e solidário. Quando a Sofia nasceu cheirava-lhe a cabeça e deitava-se ao seu lado, como que a protegê-la, indo avisar-nos quando a Sofia acordava.

Partiu subitamente, ao ar livre como adorava, a apanhar o sol de Novembro, deixando no meu coração mais um buraco que sei que nunca conseguirei, nem quero, tapar. Aprenderei a viver com esse buraco, essa ausência, recordando a Gilda com muita saudade.