Menina não entra

Hoje decidi que já estava na altura de cortar o cabelo. Pensei em ir ao meu barbeiro habitual, na Barbearia Campos do Chiado, mas decidi experimentar uma nova, a Figaro's, na Rua do Alecrim. Tinha ouvido dizer bem dos cortes, faziam cortes vintage e a barbearia era bonita. Como a família ia toda ao Chiado (eu a Vera e a Sofia), decidimos ir todos à barbearia e depois almoçar.

Entramos os três na barbearia e pergunto se posso marcar hora. Dizem-me que não há marcações, é uma questão de esperar. Pareceu-me bem, só havia dois tipos à minha frente. Sento-me, a Vera ajeita a cadeira da Sofia e prepara-se para se sentar. Vem um dos barbeiros, com um ar muito zangado ... convida a Vera a sair. Diz que as mulheres não podem entrar. Fiquei estarrecido, disse-lhe que já tinha ouvido dizer, mas pensei que era uma piada (de graça dúbia, mas uma piada). Não era. Fiquei chocado e tentei informar que estamos no século XXI, até já na segunda década. Discussão. Obviamente saí.

A barbearia está aberta, penso eu, há cerca de um ano e não vejo piquetes à porta, a imprensa não menciona, li até um artigo num blogue onde uma senhora (jornalista?) foi lá e achou graça. Fez-lhes a entrevista na pastelaria ao lado e pareceu não se importar.

Não conheço o enquadramento legal. Disseram-me que é um espaço privado -- não é, tem a porta aberta para a rua. A empresa é privada, mas o espaço é público.  Que é como nos ginásios só para mulheres -- também não é, posso não poder treinar, o que compreendo, mas não me convidam a sair da recepção. Ainda estou estarrecido. Mas é um facto insufismável que é descriminação. Ou estou muito enganado, ou a nossa lei proibe a discriminação por sexo, raça ou religião.

Sei, sim, que o famoso "reservado o direito de admissão" não existe. Cito de um site que falava sobre outro aspecto do mesmo tema:

"A expressão "reservado o direito de admissão" não tem suporte legal. É livre o acesso aos estabelecimentos de restauração e de bebidas. No entanto, pode ser recusado o acesso ou a permanência a quem perturbar o seu funcionamento normal, designadamente, por não manifestar a intenção de utilizar os serviços; penetrar em áreas de acesso vedado; recusar-se a cumprir as normas de funcionamento privativas do estabelecimento (desde que essas normas sejam devidamente publicitadas); ou que se façam acompanhar por animais (desde que essa proibição seja devidamente publicitada). Também pode ser vedado o acesso quando o estabelecimento tem uma reserva temporária de parte ou da totalidade do espaço (casamentos, baptizados...)."

É por isso que as discotecas e bares têm aqueles consumos mínimos de 250 euros ou mais. Sem razão de maior, não podem impedir o acesso a ninguém.

No entanto, a barbearia lá está ainda, de portas abertas.

Pergunto: e se proibissem gays de entrar? E se proibissem africanos de entrar? Imagino que haveria um aqui d'el rei que nunca mais acabava. Mas mulheres? Parece que ninguém liga.

Cito Martin Niemöller:

"First they came for the Socialists, and I did not speak out—
Because I was not a Socialist.


Then they came for the Trade Unionists, and I did not speak out—
Because I was not a Trade Unionist.


Then they came for the Jews, and I did not speak out—
Because I was not a Jew.


Then they came for me—and there was no one left to speak for me. "



[Uma pequena adenda a este texto. Cheguei a casa ainda muito irritado e, na impossibilidade de fazer alguma coisa concreta, achei que tinha de "deitar cá para fora" alguma coisa. Escrevi-o em 10 minutos e segui o meu fim de semana, que já de si não estava correr particularmente bem, com filha a ficar com febre e tudo. Outro tipo de texto, noutro contexto mais sereno, seria talvez mais articulado e pensado. Mas este foi o texto possível naquele momento e não o vou mudar. Para minha surpresa alguns amigos partilharam-no no Facebook e foi lido por uma catrefada de gente, com todo o género de opiniões -- todas elas válidas, que a democracia é isso. Mas há um pequeno detalhe que muita gente parece não ter compreendido, talvez por culpa minha, que não fui totalmente claro:

Eu é que queria cortar o cabelo. A Vera e a Sofia ficariam apenas à espera. Os três sabemos (ok, talvez não a Sofia) que os senhores vão às barbearias e as senhoras aos cabeleireiros, muito obrigado. Convidaram a Vera a sair não porque não lhe pudessem/quisessem cortar o cabelo, mas porque não podia estar lá dentro. Talvez tenha sido o bebé. Viram o carrinho e ficaram nervosos?]