A banheira e eu

O escritório ideal, em "Laura" (1944)
Há qualquer coisa na água quente e corrente que me acelera as sinapses e me motiva as ideias. Sempre adorei estar horas na banheira; não só pela óbvia questão higiénica mas também porque foi na banheira que me surgiram algumas das minhas melhores ideias (ou as mais idiotas, consoante a quem se faça a pergunta). Na banheira decido o que vou fazer no dia, componho textos, imagino desenhos, discuto com clientes difíceis, tudo naquele silêncio disfarçado de água a cair. Não sei ao certo porque será. Talvez porque a banheira seja o único espaço da casa de banho onde não há distracções. Ao espelho estou eu a olhar para mim, a mostrar-me a idade, as rugas, os cabelos brancos; ao lado do "trono de porcelana" há aquela pilha de revistas sedutoras (a Vanity Fair é especialmente diurética) a chamar por mim e a encher-me a vista. Na banheira... nada senão azulejos brancos para eu encher de ideias. Para a banheira só me levo a mim, embora ocasionalmente também um patinho de borracha. A banheira também tem a vantagem de me proporcionar o acesso mais directo e desobstruído ao meu umbigo, velho companheiro de conversas, especulações, distracções e planos maquiavélicos sortidos. Parece até que a água leva o supérfluo e torna tudo mais claro e simples. Se pudesse tinha o escritório na banheira, enrugando lentamente até me transformar numa passa (ou num Sharpei).

A banheira tem também o seu lado negro: no vazio das distracções entram subitamente recordações dolorosas, volto a viver certos momentos vezes sem conta, sem conseguir sair, num sufoco. Devia ter feito, devia ter dito, não devia ter dito, não devia ter feito. Sem vergonha digo que já muitas lágrimas se escoaram pelo ralo, discretas, disfarçadas. Às vezes tomo banho com os meus demónios. Sem poder fugir, resta apenas esperar que se vão embora, porque sair a meio seria confrontar-me com o silêncio e a ausência, sem armas para lutar contra eles.