Parting is such sweet sorrow

Hoje é o último dia que vivo esta casa.

Ainda haverá muitos dias de visita, até ao fim de Maio, pois ficarão sempre coisas e tralhas e pequenos nadas entre espaços vazios que parecem não querer partir. Amanhã faz-se a mudança. Uma nova casa, uma nova aventura.

Sempre tentei reconhecer os bons momentos enquanto os vivia. De pouco serve recordar algo bom que aconteceu, pensando "Ah, se eu soubesse como era bom tinha dado mais valor...". Prefiro dar valor agora, reconhecer, apreciar e guardar, enquanto acontece. Saio desta casa com muitas recordações; muitas boas, algumas más, uma ou duas terríveis, um sortido rico que é a própria vida.

Hoje acordei e, ainda naquele lusco-fusco da consciência, entre o tocar do despertador e o segundo "snooze", apercebi-me de que seria um dia cheio de "última vez que". Levantei-me e dei mimos aos gatos -- o Alice a dormir ferrado na curva das minhas pernas --, liguei o fio da Internet ao router, fui ao escritório, abri as portadas deixando entrar o sol e o calor da manhã, respirei fundo. Liguei o computador, na cozinha liguei a máquina do café, fui à casa de banho e olhei para o espelho, de onde um desconhecido cheio de cabelos brancos e algumas rugas me disse "Lá vamos nós outra vez, não é?" com um certo ar de comiseração. Sorri-lhe e respondi que não fosse choramingas. Tirei um café, bebi um copo de água, dei comida aos gatos, apanhei um cocó da Gilda. Avancei para o escritório, vi de relance os emails da manhã (nada de urgente), acendi um cigarro fui beber o meu café para o sol. O Alice, como sempre, seguiu-me e presenteou-me com a sua "dança do sol" matinal, rebolando-se languidamente pela varanda, numa coreografia de fazer uma ginasta coreana rasgar o seu cartão de atleta olímpica, emporcalhando-se no pó e no pólen que se acumulam nos cantos.

Em cada momento desta rotina pensei "o último café", "o último sol na varanda", "a última dança do sol do Alice". Mas não são, claro. A nova casa tem mais sol para o Alice, a varanda é mais comprida. A máquina de café é a mesma, os emails nunca páram de chegar.

Vim para Lisboa para estar mais perto dos amigos. Cascais, apesar de estar aqui ao pé, está tão longe. Pensei que em Lisboa os amigos, a distância física agora mais curta, apareciam de repente para jantar, trazendo garrafas de tinto, pacotes de batatas fritas e histórias do dia. Como nos filmes. E aconteceu ocasionalmente, mas não tive em conta que este estar na vida algo adolescente já tivera o seu tempo e que os amigos têm outras, as suas, vidas. Mesmo assim, deram-se muitas festas nesta casa, algumas especialmente bem-sucedidas, todas recordadas com carinho. Sempre me deu um prazer imenso ter a casa cheia, ouvir gargalhadas do fundo da sala, o tilintar dos copos, a música ao fundo em loop, mas que ninguém ouve, a nuvem de fumo dos cigarros que transbordam nos cinzeiros.

Esta casa foi mais uma etapa no longo processo de chegar à casa dos meus sonhos. Nasci e cresci numa casa enorme, com espaço para todas as brincadeiras e cheia de esconderijos. Nunca parei de tentar voltar a reencontrá-la. Sou refém dos objectos que me dão prazer e, como o caracol, levo-os às costas de casa em casa. Esta tinha espaço para tudo e ainda algum para preencher. Gozei-a em pleno, apreciei-a enquanto a vivi, rodeado de livros e quadros e filmes e objectos e nadas e tudos. Aqui aconteceu amor, desejo, luxuria, descoberta, melancolia, sedução, dor e alegria. Aconteceu a vida.

"Parting is such sweet sorrow", disse o bardo. A casa nova ainda está vazia, mas por pouco tempo. Haverá mais jantares, dar-se-ão mais festas, os amigos aparecerão com outras garrafas de vinho e pacotes de batatas fritas e novidades. E a Sofia está quase a chegar para a encher de histórias.