Os meus livros têm sexo. Palavra. Não quero dizer que são sobre sexo, embora também os haja, aquelas edições opulentas e algo mais que brejeiras da Taschen que escondemos ou viramos a lombada quando os pais e os sogros nos visitam, mas que se reproduzem. Na calada das noites mais silenciosas oiço um rustilhar discreto vindo da biblioteca e imagino um cruzar lascivo de folhas entre livros, os olhares sedutores entre lombadas de uma ponta da biblioteca para a outra, o sussurrar de parágrafos especialmente bem torneados.
De vez em quando dou por um Armistead Maupin discretamente ao lado de um Oscar Wilde, quando antes estavam em extremos opostos da sala. Os livros de Star Trek com o Capitão Kirk na capa aparecem misteriosamente perto dos livros livro do Ross Pynn com aquelas capas com senhoras sedutoras dos anos 60, cheias de ligas e pistolas. Os catálogos da Sotheby's cruzam-se com os da Profiles in History e da Christie's. Os Thomas Mann insistem em aparecer sozinhos em cima da mesa, a observar os outros, à distância. Os poetas parecem ser os que mais praticam a abstinência, reduzindo misteriosamente o número de páginas.
Multiplicam-se a uma velocidade prodigiosa. Isto torna-se especialmente evidente nas mudanças de casa. São as mesmas estantes, mas agora os livros têm de ficar em dupla fila (coisa que detesto, mas a que a necessidade obriga) e ainda falta espaço. De onde veio tanto livro? Compro-os com regularidade -- tenho dificuldade em entrar em qualquer livraria sem sair com um livro -- mas mesmo assim...
A cada caixa de livros aberta lancei uma maldição discreta (mas carinhosa) aos meus pais e à minha avó, que sempre me encorajaram a ler. A minha mãe trabalhou muitos anos numa livraria, construí os meus alicerces na Biblioteca Juvenil Gulbenkian, no Parque Marechal Carmona de Cascais, onde conheci muitos dos que ainda hoje são meus amigos. A minha avó tinha uma biblioteca considerável em casa, de que me servi a gosto.
Sou dos que lêem na cama. Tenho dificuldade em adormecer sem ler uma página que seja, muitas vezes deixando a luz acesa e o livro aberto no peito. Só adormeço ao som das letras.
Um dos senhores que fez a mudança, já nos seus sessentas, ao ver a quantidade de caixotes de livros que entravam na casa perguntou, com um sorriso, "Já pensou em comprar e-books?". Já, e em meros segundos tirei da ideia. Nenhum Kindle, iPad ou afim substitui aquele cheiro delicioso do papel, novo ou antigo, o cheiro do pó, o folhear lânguido das páginas, aquele objecto de design perfeito que nos põe o peso das palavras nas mãos.
A biblioteca cresce, as estantes invadem lentamente a casa, como um ser vivo cujas artérias vão entupindo com o passar dos anos, acabando por aniquilar o organismo que as abriga. Visitas que me conhecem menos bem perguntam-me se já li aquilo tudo. Céus, não! Que ideia terrível, a de uma biblioteca completamente lida. Os livros estão lá para quando o desejo mos pedir. Quando os observo acenam-me com promessas de histórias a pedir que os escolha, como se eu fosse o sultão de um harém literário, e ressentem-se terrivelmente quando releio algum. Sei que muitos nunca chegarão a ser lidos por mim, mas far-me-ão companhia até ao fim. Que talvez passe, quem sabe, por uma fulminante derrocada literária.
Mas tantos, tantos livros, e nada para ler!