Ver nascer
A criação, tal como a morte, é um acto solitário. Dickens provavelmente estava sozinho quando lhe ocorreu escrever "It was the best of times, it was the worst of times", Beethoven provavelmente também quando os seus dedos tocaram aquelas duas famosas notas da Quinta no piano. Os pintores escondem-se nos seus ateliers e raramente mostram os esboços. Raramente temos o privilégio de ver o processo.
No cinema já não é assim. O realizador pode planear os seus planos a sós, mas terá sempre de os discutir com o produtor, com o director de fotografia, com o operador de câmara, mais tarde com os actores, o montador, o editor de som, antes de os criar. A criação passa a ser um acto partilhado, um acordo entre a ideia e o possível.
Em qualquer destas situações, só os intervenientes estarão envolvidos, nunca o espectador. Esse, só no fim, depois de tudo pronto. Mas quem nunca quis ser a proverbial "mosca na parede"? Já estive em vários plateaus de cinema e, por muito que se diga em contrário, filmar pouco ou nada tem de íntimo. Dezenas de pessoas mexem, mudam, vão buscar, mandam, fazem atrás da câmara. O realizador precisa dos técnicos e dos actores, os actores precisam da mestria da equipa, da aprovação do realizador, do amor da câmara.
Durante todo o processo de criação do "Quinze Pontos da Alma" do Vicente do Ó tenho tido o privilégio raro de ser "mosca" ocasional. Lembro-me de quando nasceu a ideia, do momento "eureka" em que surgiu a Simone e o Vicente correu para o seu computador para dar palavras ao sentimento. Mas depois houve como que um "fast-forward" e surgiu o argumento acabado -- o Vicente não é daqueles que revêem os seus textos interminavelmente, pois escreve com a segurança de quem sabe o que faz e o faz bem. Essa criação foi, mais uma vez, um acto solitário.
Fast-forward. Estamos na Fnac do Chiado, a percorrer os livros e os filmes e os discos. Uma capa chama a atenção do Vicente. Parece o Tom Ford? A banda chama-se Casino Royal e nenhum dos dois ouviu falar. Está em escuta e os Vicente põe os auscultadores. Não passam 30 segundos em que oiço um Vicente visivelmente agitado dizer-me "Nuno, tens de ouvir isto!" Ponho também os auscultadores e, se não ficámos ali mesmo a ouvir o álbum inteiro, não sei. Seduzidos, estarrecidos, apaixonados por aquela música que nos fez, várias vezes, olhar para a contra-capa do CD para confirmar que realmente era coisa feita por cá, em Portugal. Nossa. E foi ali mesmo que o Vicente me disse "isto é o som do meu filme".
Fast-forward. Negociações, abordagens, conversas que não acompanhei. Soube que o Pedro Janela aceitou fazer a banda sonora do "Quinze Pontos". Conversaram, discutiram o que pretendiam, o que era possível.
John Williams e George Lucas. Bernard Herrmann e Hitchcock. Danny Elfman e Tim Burton. Quem não sonhou ser a tal "mosca" nos momentos em que estas duplas tão famosas criam o que mais tarde iríamos ver? Estes casamentos "made in heaven" em que o som e a imagem se completam de forma tão absoluta.
Quis o acaso que o Vicente mudasse de casa recentemente e que a sua aparelhagem não estivesse montada. Perguntou-me se podia ouvir as músicas do Pedro Janela em minha casa, pois o som era bastante melhor. Obviamente não me fiz rogado e, discretamente, voltei a vestir o meu fato de "mosca".
Vi nascer e, mais raro ainda, vi crescer. Vi o que eram apenas uns acordes -- belos, sem dúvida, mas incipientes, apenas os primeiros passos, mas estava lá o sentimento. Com o passar das semanas vi a segurança que o Pedro Janela foi ganhando.
Vi o Vicente e o Pedro dicutirem o que se pretendia da cena, o que a música devia dizer, o que devia complementar. Ouvi o Vicente ouvir, moldar, explicar a intenção. "É lindo, mas não é por aí". "É isso mesmo". "Essa frase é óptima para aquela cena". Tantas vezes vi o Vicente ficar de boca aberta, deslumbrado, a ouvir outra e outra vez.
Ouvi o Pedro ajustar, criar, surpreender. Ouvi o também o Pedro crescer, ganhar segurança, ir cada vez mais longe, levando o filme a lugares a que o Vicente não esperava.
E o "Quinze Pontos" foi ganhando outra vida. O todo tornou-se tão mais do que a soma das partes.
E eu pude ver acontecer.
Obrigado Vicente e Pedro por me deixarem ser um bocadinho "mosca".