As aventuras de um cromo na terra das aventuras

1983. A ARPANET adoptava o IP, criando a Internet, Bjorn Borg retirava-se do ténis, Ronald Reagan chamava "império do mal" à URSS, o space shuttle Challenger fazia a sua viagem inaugural para o espaço, o Michael Jackson estava no top com "Beat it" e quem queria um par de jeans tinha de ir aos Porfírios.

Eu tinha 15 anos e era um cromo.

O ZX Spectrum tinha sido lançado no ano anterior e os primeiros amigos a ter uma coisa dessas eram os Canavarros. Longas noites com os olhos a arder, em cima de uma TV na cave a jogar "Horace and the Spiders" e "Presidente" à vez, e os Dire Straits que não se calavam. 16K inteirinhos para brincar, uma fartura. O deslumbre de escrevermos uma coisa no teclado de borracha e... aparecia no ecrã! O mundo estava a mudar irreversivelmente e nós sentiamo-nos o Matthew Broderick no "Wargames", que tinha acabado de estrear nos cinemas. O futuro era agora. Não conseguíamos largar aquela coisa, ao ponto de o Gonçalo ter de nos dizer, com o seu ar mais sério, que "o computador está cansado, agora têm de ir para casa". E acreditávamos. Contrariados, mas íamos.

Não descansei enquanto não tive um. Passei um Verão inteiro a embrulhar verduras no Pão de Açucar e no fim do Verão comprei o meu Spectrum, agora com uns gigantescos 48K. Este podia ter jogos MUITO maiores, MUITO mais complexos. E numa revista do Spectrum (provavelmente a Sinclair User) falavam de um jogo de um tipo muito especial, completamente diferente de qualquer coisa que já tivessemos visto nas salas de máquinas, um jogo em que escrevíamos coisas e ele respondia, como se fosse inteligente. Eram as aventuras e o jogo era "The Hobbit". Organizou-se uma expedição com o Vasco Oliveira a um centro comercial no Saldanha (City?) onde vendiam jogos piratas e trouxemos um exemplar para casa. Sem instruções ou caixa, uma cassete apenas, escrita à mão. Nunca mais parámos de jogar aventuras. Os jogos de acção eram interessantes, sim, e divertidos para um bocadinho, mas as aventuras absorviam-nos horas e horas sem fim. Resolvemos aventuras atrás de aventuras, trocávamos soluções com outros jogadores pelo correio -- eu tinha pen-pals até no Sri Lanka e na Dinamarca. A revista de referência eram a Popular Computing Weekly onde escrevia o Tony Bridges e a Computer + Video Games onde escrevia o Keith Campbell. Contribuíamos regularmente para as duas publicações, a pedir ajuda, a dar ajuda, a comentar as escolhas. Tanto dissemos ao Keith que devia visitar o soalheiro Portugal que... um dia decidiu aceitar o convite, com a sua esposa Ruth.

Foi como se fossemos católicos ferrenhos e o Papa decidisse vir jantar cá a casa. Como não sabermos o que vestir e o Cary Grant vir dar uma ajuda a escolher a roupa.

E o Keith lá veio, cheio de jogos e revistas e t-shirts, com a Ruth. Ele próprio contou a sua viagem na C+VG, no número de Novembro de 1986:


E os Campbell continuaram a vir. Nós fomos crescendo, cada vez se falava menos de aventuras, pois tudo tem um tempo, e mais se falava da vida, de crescer, das escolhas profissionais, dos pequenos nadas dos amigos. Até que perdemos o contacto. Creio que o Vasco ainda recebeu os Campbell mais umas vezes, mas a minha vida foi mudando -- muito muda, a minha vida -- e também perdi o contacto do Vasco.

Os anos passaram, os computadores mudaram, os gráficos melhoraram, as máquinas foram ficando mais complexas, mais multimédia mas, de alguma forma, perdeu-se a inocência das velhas aventuras de texto. Redescubro-as agora através da net, com os emuladores, e são como uma lufada de ar fresco. Uma boa história é uma boa história, com ou sem imagens.

Nos idos anos 80 de alguma forma senti que o (meu) futuro passava por ali. Nunca imaginei vir a trabalhar para uma Sony, uma Codemasters ou uma Electronic Arts. De consumir para fazer. Todos os dias tento não perder o "sense of wonder", nisto como em tudo.

Acordo de manhã, sento-me ao PC, olho para os emails, sorrio e penso "Eu faço videojogos. Ena pá!"

Encontrei este artigo sobre o Keith:
Keith Campbell - musings of an adventure guru

PS - Ontem a meio da noite lembrei-me deste artigo na C+VG e fui vasculhar as revistas antigas. Hoje googlei o Keith, pensando em escrever-lhe ou telefonar-lhe, e li que faleceu em 2006. Tarde demais. O meu mundo ficou mais pobre.